quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Coisas que não sabem sobre mim #2

Era miúda quando isto se passou. Tinha 5/6 anos, nem sei bem.
O meu tio J. fazia parte da direcção de uma Sociedade Filarmónica. E uma das grandes lacunas da anterior direcção era, exactamente, a falta de iniciativas dirigidas às crianças.
 
Com o novo "executivo" vieram novas e boas ideias. Entre elas, um festival da canção infantil. Nada de imitações, playback. Não, nada disso! Crianças que cantassem. Com vozes de encantar.
 
Ora na minha família todos gostamos de cantar. Longos eram os serões de cantorias. Mas uma coisa é gostar de cantar, outra é ter voz para isso. E, à excepção do meu avô, que até fazia parte de um grupo coral, poucos sabiam cantar. Deixa cá ver... pois, a minha prima mais velha (a do pudim) e a segunda mais velha... dava uns toques, vá...
 
Pois, já se está mesmo a ver. A minha querida tia Vicência inscreveu as minhas duas primas. E ajudou-as. E elas ensaiaram. E tinham umas roupas lindas de morrer. E eu... nada... porque não tinha voz de cantora...
 
Que tristeza profunda a minha. Naquela idade sabemos lá nós se temos ou não voz. Queremos é cantar. E se eu fazia tudo o que as minhas primas faziam, porque motivo é que não podia participar no festival?
 
Estou a ver-me na derradeira cena final que ditou o meu destino.
Andava a minha tia na cozinha a limpar a bancada e eu de volta dela.
- Oh tia... eu também quero ir... - a choramingar.
A minha tia para a frente e para trás. Para trás e para a frente. E eu atrás dela. Devo ter sido tão chatinha, mas tão chatinha, (a coisa já durava há uns dias) que estando ela a limpar os piais que ladeavam o fogão, teve um repente. Atirou o pano para o lava-louça e disse-me:
- Queres ir cantar?
- Quero!
- Então vais ter de aprender uma música que te vou ensinar até à hora do almoço. Se não conseguires decorá-la, não vais.
- Está bem! (acho que dei pulos de alegria)
E lá começou ela.
- Repete depois de mim:
 
Triga trigueirinha, olaré meu bem
Hás-de ser só minha e de mais ninguém
 
Esta era a parte do refrão. Primeira dificuldade: não conseguia dizer "olaré", mas antes "oralé"!! Perdemos algum tempo naquilo... até que ela desistiu e passou à frente...
 
(não me lembro do que vinha antes disto)
Trigueira é a azeitona, que vai à mesa do rei
 
Consegui decorar a música. Consegui convencer a minha tia.
Pegou em mim pela mão e fomos ter com o meu avô que morava na mesma rua.
- Pai, faça-me lá o favor de ir à Sociedade inscrever a Cláudia no Festival.
O meu avô parecia que tinha ouvido a maior barbaridade do mundo. Mas avô que é avô sabe disfarçar estas coisas. Foi o que fez. E partiu no seu "mandado" (era assim que ele classificava qualquer recado ou pedido que lhe faziam).
 
No dia do festival toda eu reluzia. Por dentro e por fora. Qual Lisa Mineli! Aquilo é que era uma verdadeira artista. Com um fato de macaco cor-de-rosa, de manga curta. E o cinto? Lindo! Dourado, a condizer com os sapatos.
 
Dos bastidores assisti à performance das minhas primas e das outras crianças que cantaram antes de mim. Quando chegou a minha vez, pisei o palco formosa e não segura. Como o poema do Camões. Descobre a touca a garganta. Cabelos de ouro o trançado. Fita de cor de encarnado. Tão linda que o mundo espanta. Chove nela graça tanta. Que dá graça a formosura. Vai formosa e não segura. (Desclaça vai para a fonte)
 
Olhei para o microfone. Olhei para a plateia. Olhei para trás. Olhei para os lados. E ouvi:
- Canta! Canta! Começa a cantar! - era a minha tia a gritar do seu lugar no meio do público para mim.
 
E comecei a cantar. E sabia a letra toda. E não disse "oralé". Disse bem. E bateram-me palmas. E eu adorei aqueles breves minutos em que algumas centenas de pessoas se calaram para me ouvir. E quando acabei, agradeci. Fiz uma vénia. Sai do palco tão leve, tão feliz. Voltei a dizer adeus. Para mim tinha acabado ali. Estava concretizada a minha missão.
 
Acabou o festival. Fomos ao bar. Lembro-me de estar a beber um sumol de laranja. Daquelas garrafas verdes de vidro. Lembro-me de ouvir uma voz a soar das colunas espalhadas pela sociedade. Lembro-me de ouvir o meu nome. Era o apresentador a anunciar os galardoados. Em 3.º lugar, não me lembro. Em 2.º lugar, eu! Em 1.º lugar, um coro infantil! As minhas primas, não sei! Mas eu fiquei em 2.º lugar!
 
Por esta é que ninguém esperava. Fui a correr pela mão de uma dulto. Tinha de subir ao palco. Atrás de nós a família que estava completamente abstraída desta hipótese. E subi, sem saber muito bem o que estava a contecer. Recebi um diploma. Recebi uma medalha. Recebi um cheque.
 
Recebi tudo aquilo em que nunca tinha pensado quando insisti em participar.
Mas fiquem descansados. Não me convenci. Não canto em público. Só entre amigos e familiares.
 
Obrigado tia.

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