Ontem jantei com um grupo de amigos com quem se proporcionam, sempre, encontros de grande entusiasmo em torno de reflexões profundas sobre tudo e mais alguma coisa. Digo "profundas", porque partilhamos o mesmo vigor nas discussões e gostamos do sabor do calor de uma boa troca de ideias. E se, por acaso, nunca tínhamos reflectido sobre os assuntos que este ou aquele coloca em cima da mesa, rapidamente fazemos um exercício oral, e introspectivo, de resposta e contra resposta. Uma espécie de tertúlia camoniana que anima as hostes e, ainda por cima, acompanhada de bebidas e petiscos. À verdadeira imagem do portuguese meeting style.
Gosto, particularmente, de acabar a noite com a sensação de ter tido uma troca de ideias válidas, enviesadas pelo saber de experiência feito, salutares e que me deixem a pensar sobre os temas debatidos. Gosto, talvez, por sentir que me enriquecem. E que são um bom ponto de partida para novas descobertas. Pesquisas. Conclusões.
Falámos de coisas tão diversificadas como literatura, homossexualidade, maçonaria, filosofia, antropofagia e, espantem-se, epitáfios. Um dos nossos amigos teve um momento altamente revelador, pelo menos para mim, quando disse que anda a pensar e a tentar escrever o seu epitáfio à luz daquilo que foi a sua vida até hoje, mas com a certeza de que esse teria de ser um documento em aberto, alvo de vários updates ao longo da vida. A que lhe falta viver.
Disse-nos que gostaria de ser citado e que tem a mais pura consciência da inconstância da vida. Do desconhecimento sobre a morte. Da inoperância sobre a hora final. Comparou essa falta de tacto à Alegoria da caverna de Platão exemplificando como a escuridão perante a verdade tem o poder de aprisionar-nos a uma curta visão sobre o que andamos cá a fazer. E até quando. Somos, portanto, uma espécie de prisioneiros da caverna. Alegoricamente.
Admiro esta sua tentativa. Escrever sobre nós próprios, adjectivando-nos, não é tarefa fácil. Resumir o que fomos e vivemos numa lápide, ainda pior. E os que ficam? Não serão esses os únicos que vivem, realmente, a nossa morte? Não dependerá deles a nossa memória? Não deveremos libertá-los daquilo que é a nossa vontade uma vez que já não estaremos cá? Ou deveremos continuar a impor-nos mesmo depois de encontrarmos aquilo que não sabemos que nos espera? Admiro a sua tentativa. A finta que tenta fazer à caverna. Essa caverna onde vivemos aprisionados.
Não consegui dizer que o meu epitáfio não serei eu a escrevê-lo nem ninguém que fique cá a carpir a minha morte. Pois, pura e simplesmente, não quero continuar a impor a minha vontade aprisionando os que ficam. Não quero a romaria de Domingo ou do Dia de Todos os Santos em função de mim. Não quero impor a perpetuação da minha memória. Quero, pura e simplesmente, ser cremada. Já o disse a quem de direito. Porque estas questões têm de ser resolvidas. Agora. Em vida.
Acredito numa coisa. Sobre esta escuridão que é a caverna de Platão e a que Sócrates, pleno da sua maiêutica, respondeu com o célebre só sei que nada sei. Com a consciência de que somos princípio, meio e fim em nós próprios, indivisíveis. Acredito que há vários mundos. Os mundos das coisas. E no mundo dos vivos, tratam-se de coisas dos vivos. No mundo dos mortos, logo se vê. Quando lá chegarmos.
Mas meu caro amigo que andas a tentar escrever um epitáfio sujeito a várias actualizações ao longo da vida. Se encontrares uma forma de fintar a escuridão que nos aprisiona, não deixes de partilhá-la. Quanto mais não seja como desculpa para mais uma tertúlia. Desta feita, bocagiana. Com a certeza de que não será expurgada a tua/nossa produção, tal como fizeram ao poeta. A não ser que resulte numa expurgação que te leve a uma verdadeira epifania sobre a morte. Ou sobre a vida. No entanto, desculpa desapontar-te, mas a ideia não é nova. Já o poeta maldito, assim conhecido pela sua linguagem vernácula, teve a mesma ideia. E foi nessa época em que tanto escreveu sobre o momento da partida que a sua poesia ganhou maior riqueza.
Das duas uma, ou estás ao nível da sua intelectualidade ou estás a meter a foice em seara alheia. Olha só o que ele nos deixou:
Já Bocage não sou!
Já Bocage não sou!... A cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura:
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento;
Musa!... Tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse, pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!
É de poeta! Ainda assim arriscas?