sexta-feira, 12 de abril de 2013

O arco da velha


Era uma vez uma velha, tão velha, tão velha, que a mais velha pessoa sua vizinha que morava na mesma aldeia não se lembrava de algum dia a ter visto nova. Esta velha, testemunha histórica de acontecimentos inexplicáveis na vida daquelas gentes, mantinha-se imutável às tristezas ou alegrias de quem por ali passava, indiferente às provocações dos sentidos e muda, mesmo perante a mais macabra das inconfidências.

Não havia quem não a conhecesse. Não havia quem não lhe tivesse contado um segredo. E o tempo, esse inimigo da formusura e encantamento natural dos que caem em graça… e em desgraça, começava a dar sinais da sua presença, macerando-a, indelevelmente.

Foi testemunha de hábitos e vícios. Viu o menino e a menina a namorarem às escondidas e o marido a saltar muros e telhados de regresso a casa, depois de cometer o pecado da traição. Viu a virgem tornar-se mulher e, à força, a casar. Viu o menino a ir para a guerra e a não voltar… Viu o vinho a falar mais alto, através das mãos dos homens, isto num tempo em que as portas das casas não se fechavam. Hoje não vê, mas adivinha, que o vinho continua a fazer das suas e os homens e as mulheres, que não bebem, a fazer das deles…

Aquela velha era um baú de memórias sem valor estimado. Viu o pobre tornar-se rico e o rico… abandonado. Viu o sol nascer vezes sem conta, ela que vivia naquela ponta da aldeia, tudo sabia e nada dizia. Até um dia…

Era uma velha sabida. Era uma velha vivida, aquela velha que um dia, como por magia, viu derrubado o arco engalanado que a embelezava, esse sim, o responsável pela sua graça. Sem santo a apadrinha-la, a velha deixou de existir, pelo menos como a conheciam. O tempo, ai o tempo, não lhe perdoou nada e ao arco que a embelezava ditou-lhe uma sentença de morte.

Era velha, a Rua Velha com um arco ao meio, a mais velha rua daquela aldeia, a mais velha testemunha das vidas daquelas gentes.

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