Era assim que me diziam, os adultos, quando alguém tinha morrido. Com uma coisa má. Não sei se na altura não se sabia com que é que as pessoas morriam ou se a palavra cancro era demasiado pesada para ser pronunciada em voz alta. E eu demorei alguns anos a perceber que tinha sido esse monstro a levar da minha vida algumas das pessoas que me marcaram e que já partiram.
Lembro-me de um caso em particular. A minha tia Isabel, do Alentejo, irmã do meu avô. Isto porque era uma das pessoas mais amorosas que conheci. Não me lembro de, algum dia, a ter visto nova. Claro que não. Como não me lembro do meu avô ainda novo. Porque simplesmente não os conheci assim. Mas de todos os mais velhos daquele tempo, a tia Isabel irá, para sempre, permanecer na minha memória com o seu sorriso que se perpetuou pela hora da morte.
Velámos o seu corpo em casa. E quando entrei na sala onde ela estava vi o seu rosto decoberto. Tranquilo. Tão tranquilo, como ela em vida. Pareceu-me vislumbrar um sorriso de serenidade. De quem partiu em paz com os que ficaram. Em paz com o percurso que fez.
- Porque é que a tia Isabel morreu?
- Porque teve uma coisa má.
Anos mais tarde percebi. A tia Isabel teve um cancro no instestino.
As coisas más desta vida podem ganhar imensas formas. Um acidente, a perda de um filho, uma doença rara, um cancro, violência doméstica e tudo o mais que seja mau para nós. Palavras duras também podem ser uma coisa má. Daquelas que ferem as entranhas. Que ecoam na mente das pessoas. Que assaltam a tranquilidade de cada um.
E eu, infelizmente, habituei-me a conviver com essa coisa má que se chama cancro. E a perder a fé, a cada caso que, à partida, pelo caminho que os médicos traçam no combate à doença, percebo que não deve ser assim. Para que corra bem.
O meu pai teve cancro. O meu marido teve cancro. A minha tia partiu por causa dele. Acompanhei duas colegas no emprego. Uma, reincidente. E mais dois colegas que só acompanhei à distância também já partiram. Nos últimos tempos estive atenta aos casos da Vitória Guerra e do Diogo Leça. Duas crianças que geraram uma grande onda de solidadriedade. Dois anjos na terra. Agora, dois anjos nas vidas dos seus familiares a amigos. E perdi dois amigos em 2012. Um a seguir ao outro.
Na semana de férias que tivemos há 15 dias, mais uma notícia sobre uma coisa má. De um amigo nosso, muito querido. Uma força da natureza. Daquelas pessoas que nos inspiram e a quem adivinhamos um futuro promissor. 28 anos de vida. E uma coisa má dentro dele.
Um dia, após a perda de um ente querido, disseram-me que a melhor maneira de encarar as perdas é aceitá-las. Aceitar que as pessoas têm uma missão na Terra. Uma missão na vida dos outros. E que eu devia fazer o exercício de perceber qual o papel que essas pessoas tiveram na minha vida. O que é que aprendi com elas. Mas eu não entendo isso. Pode ser que um dia consiga. Mas ainda não entendo.
Não entendo porque é que as pessoas procuram refugiar a sua dor por trás das coisas más que acontecem. Que é assim que tem de ser. Que só assim é que aprendemos alguma coisa. Que a missão dos outros é sofrer. E deixarem-nos a sofrer. Que o ser humano é tão mau que só com uma coisa má poderá aprender algo de bom.
E, assim, cá me vou vacinando contra isso. Escudando-me a cada novo caso que me é próximo. Vou pondo o coração num saco térmico dentro do congelador até que a coisa má passe. Para que consiga preservá-lo o mais possível. Longe das coisas más que me afectam e cujo destino adivinho. Porque acreditar é importante. Muito importante. Mas não chega...
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